Sarronca, Portugal
A sarronca é um instrumento musical tradicional, do tipo membranofone de fricção. É constituído por um cântaro de barro que funciona como caixa de ressonância, uma pele que tapa a boca do vaso e um elemento fricativo que consiste numa haste em cana ou madeira.
O executante segura a sarronca debaixo de um dos braços em posição oblíqua e fricciona a membrana com movimentos lineares. Por ação do executante, a haste trespassa a pele e coloca-a em vibração produzindo um som grave, uma espécie de ronco.
A membrana pode ser feita de pele de ovelha, carneiro, cabra, cabrito, coelho. É conhecida por diferentes nomes, com materiais diversos, de acordo com a zona onde é feita. Roncadeira, zabumba, zamburra, zurra-burros e ronca são outros termos portugueses para o mesmo membranofone de fricção.
Há sarroncas cujo elemento fricativo não é uma haste mas uma corda esticada. O instrumento é utilizado por grupos folclóricos. Acompanha canções de reis e janeiras, e ouve-se também pelo Carnaval. Em 2020, a ronca de Elvas teve vasta divulgação nacional através da RTP por ter sido candidata às 7 Maravilhas da Cultura Popular.
Situa-se no índice 23 no sistema Hornbostel-Sachs de classificação de instrumentos musicais. Os tambores friccionados são os membranofones cuja pele ou uma corda fixada a ela é friccionada com as mãos, varas ou outra coisa.
A sarronca segundo Ernesto Veiga de Oliveira
A sarronca, também conhecida pelo nome genérico de ronca, é um instrumento muito primitivo, da categoria especial dos membranofones de fricção, composto essencialmente por uma caixa de ressonância cuja boca é tapada com uma pele esticada que faz de membrana vibratória, posta em vibração sonora não por percussão mas por fricção da membrana ou de um elemento fixo por uma ponta no seu centro, e que se esfrega com a mão; produz-se desse modo um ruído grave e fundo, que o bojo da caixa transforma no ronco que caracteriza o instrumento.
A organologia distingue duas espécies principais destes membranofones de fricção, conforme o processo fricativo pelo qual a pele é posta em vibração: é directo, se se esfrega directamente a membrana, ou indirecto, se existe algum elemento fricativo.
Os membranofones de fricção directa são geralmente membranofones de percussão vulgares, tambores ou pandeiros, usados daquele modo especial; a fricção faz-se então normalmente com a própria mão (que por vezes se unta com qualquer produto que lhe aumenta a força de aderência) ou, em certos casos, com um pano. Entre nós, e no resto da Europa, eles não parecem ser conhecidos.
Os membranofones de fricção indirecta podem, por sua vez, ser de dois tipos, conforme o elemento fricativo é flexível (uma corda) ou rígido (um pau ou haste); cada um destes tipos pode ainda ser de duas espécies, conforme esse elemento fricativo é exterior ou interior, isto é, conforme a corda ou haste se encontram por fora ou por dentro da caixa. Em todos eles, a caixa geralmente não é típica, e qualquer recipiente faz as suas vezes; na maioria dos casos europeus, usa-se para o efeito uma vasilha ou vaso de barro; entre nós, porém, na região de Elvas, fazem-se, em certas olarias, bilhas especiais para as sarroncas, na época em que elas ali se usam, que é o Natal.
O instrumento é levado sob o braço direito: a fricção faz-se longitudinalmente, ao longo do elemento fricativo, da pele para fora se este é de corda (jalando), do topo livre para a pele (puiando) ou em ambos os sentidos se ele é de haste; neste último caso, quando o instrumento se integra num conjunto, os dois sons, que correspondem a cada um desses movimentos, fazem um acompanhamento baixo e de ritmo vivo. Estes elementos fricativos, ou os dedos, untam-se com resina, cera, água, saliva ou outro produto pegajoso — por vezes, em certos povos, sangue —, e ora se faz deslizar a mão fechada sobre a corda ou haste, provocando um ronco contínuo, ora, no primeiro caso, se faz passar a corda segura entre o polegar e o indicador em pequenos movimentos sucessivos e bruscos, que produzem uma série de estrépitos secos e iguais.
Parece que por vezes o tocador apoia os dedos da mão esquerda sobre a pele, para graduar a sua vibração e sonoridade. Os «virtuosos» valem-se de todos estes processos para fazer floreados e «bonituras», e marcar o ritmo dos bailes (e, nos casos afro-americanos, quando querem fazer falar o morto pela voz do instrumento).
Destes membranofones de fricção indirecta conhecemos entre nós a sarronca de haste exterior, que é a mais corrente, e a de corda interior. Nestas duas formas, o instrumento era certamente outrora de uso bastante corrente e comum em muitas regiões do País, embora com nomes, particularidades e técnicas de factura e funções consideravelmente diferentes, conforme as diversas áreas e localidades.
De um modo geral, no Noroeste, o nome mais usual é o de ronca ou sarronca; em Terras de Miranda (Duas Igrejas, Ifanes) dizem zabumbas, e do mesmo modo na zona além-Guadiana, as variantes zabomba (Barrancos, Safara), sabomba (Santo Aleixo da Restauração) ou zambomba (Santo Amador); em Freixo de Espada à Cinta (Mazouco, Fornos) é a zorra; na arraia beiroa, no Sudeste da Beira Baixa (Malpica, Rosmaninhal, etc.), zamburra; em S. Brissos (Beja) registamos roncadeira, e em Valhelhas (Guarda), zurra-burros. No Algarve, finalmente, em Loulé, confundindo significados, Athayde de Oliveira descreve o instrumento sob a designação de adufo.
Nestas nossas diversas sarroncas, a caixa é, em regra, geralmente uma vasilha de barro, de diferentes tamanhos e formas, que variam conforme o tipo de louça da região. Mas ela pode ser de outras espécies, como sucede com as zabombas de Barrancos e as zorras de Freixo de Espada à Cinta, onde se usa mesmo tudo o que possa servir para fazer aumentar o barulho da fricção: púcaros ou panelas, pequenos ou grandes, «quanto maiores melhores», de barro, folha, alumínio ou até esmalte, latas, bidões, cortiços, etc.; as zamburras do Rosmaninhal também muitas vezes são canecos de folha, e do mesmo modo em certos casos alentejanos (Ferreira do Alentejo, por exemplo).
Em Loulé e em outras partes, além das panelas habituais, usam por vezes os alcatruzes das noras. Os cortiços das abelhas são muito frequentes e então o instrumento leva por vezes mesmo o simples nome de cortiço: temos indicação do seu emprego em Santo Tirso, ocasionalmente em certas partes do Gerês, em Cabeceiras de Basto (Eiró), em Vilarinho da Furna, etc.; no Barroso (Covas do Barroso, Boticas), em vez dele, vê-se em alguns casos um cilindro de madeira; mais excepcionalmente, encontramos também a cabaça de fundo serrado, por exemplo nas roncas pastoris da serra de Mação.
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A pele que se usa para membrana de vibração deve naturalmente ser fina, mas varia também conforme as maiores disponibilidades locais; geralmente de ovelha, carneiro, borrego, cabrito, chibo — por vezes o fole da farinha (Rio Caldo, Gerês) — ou cabra (a samarra das zamburras beiroas), preferem-lhe nas terras de além-Guadiana, e, em Loulé, as de coelho ou lebre, colocadas com o pêlo para dentro; no Leste trasmontano, de Freixo de Espada à Cinta, em Mazouco, Fornos, etc., a Terras de Miranda, usam a bexiga de porco. E é também de bexiga de porco ou de carneiro (as maiores) que se recobrem as sarroncas que se fazem na região de Elvas. […]
A sarronca, sob estas diferentes formas, é entre nós usada fundamentalmente em duas épocas definidas e preferentemente à noite: no Carnaval e no ciclo do Natal. De uma maneira geral, em toda a faixa ocidental do Norte do País (onde, de resto, ela é, pelo menos agora, muito pouco frequente), em diversos pontos dos distritos de Viana do Castelo, Braga, Vila Real, Porto, Aveiro, Viseu, Coimbra, Leiria e Santarém, e também no Leste, nos da Guarda e Castelo Branco — Aranhas (Penamacor), Vilar Barroco (Oleiros), Zebreira e Segura (Idanha-a-Nova), Aldeia Nova do Cabo (Fundão); Malpica do Tejo (Castelo Branco) (aqui juntamente com o adufe, o almofariz e a garrafa com garfo) — e em pontos isolados do Alentejo — por exemplo Redondo e Póvoa (Moura) —, onde ela ainda existe ou há memória de ter existido, a sarronca tem o carácter de um instrumento carnavalesco, justificado de resto, pelo seu aspecto e som, e que se usa nos desfiles e brincadeiras dessa ocasião.
Este mesmo carácter festivo — e também nocturno — da sarronca está na base da sua utilização nas esfolhadas e espadeladas, que registámos em Rebordões (Santo Tirso). E numa ordem de ideias afim, vemo-la às vezes nas «rogas» que vêm às vindimas do Douro. Traduzindo esta feição, em certos casos, como por exemplo Eiró (Cabeceiras de Basto), Tecla (Celorico de Basto) ou Cerdeira (Montalegre), ela aparece igualmente na Serração da Velha; e na Ponte da Barca, em Santo Tirso e em Gião (Feira), etc., nas assuadas aos viúvos que casam.
Em numerosos casos, como, por exemplo, no Alto Minho, em Alvarães, Anha, Barroselas (Viana do Castelo), na Lapela e Traporiz (Monção), o instrumento e o costume desapareceram, mas subsiste a palavra, com um significado de entidade vaga com que se mete medo às crianças, que personaliza talvez a expressão desse ronco nocturno e tenebroso.
Noutros lugares onde a tradição se perdeu mas o instrumento ainda existe, ele é usado em paródias e partidas, também geralmente à noite, para meter igualmente medo aos transeuntes solitários; é o que sucede, por exemplo, em Vale de Nogueira (Vila Real), em Louredo (Feira) (em que são visados, especialmente, os rapazitos novos que infringem a proibição de saírem à noite antes dos 18 anos), em Amoreira da Gândara (Anadia), no Louriçal (Pombal), em Valhelhas (Guarda), e ainda em alguns casos algarvios, como Bensafrim (Lagos).
Na faixa oriental do País, na província bragançana, no Alentejo, de um modo geral, e acentuadamente nas terras de além-Guadiana, e ainda em inúmeros pontos da arraia beiroa — que correspondem à área pastoril portuguesa característica, estreitamente aparentadas com as terras espanholas confinantes —, e também no Sul da Estremadura, a sarronca, que mostra aí os aspectos mais significativos entre nós, embora também de uso por vezes nocturno e feição aparentemente burlesca, pode-se considerar como instrumento de carácter cerimonial, próprio do ciclo do Inverno e, sobretudo, do Natal, isto é, do período em que a Igreja permitia, no interior dos templos, músicas rústicas e pastoris, sendo de notar que, nestas áreas, e especialmente no Alentejo e na arraia beiroa, o costume conserva plena vigência e desperta grande entusiasmo.
Nestes casos, a sarronca toca-se ora em casa, como é o caso de Castelo de Vide, de S. Brás da Várzea e de S. Lourenço (Elvas), de Vila Viçosa, de Juromenha (Alandroal), e das terras de além-Guadiana, muitas vezes a acompanhar os «cantes» ou cantares ao Menino Deus (Alcácer do Sal e, sobretudo, Campo Maior, Vila Boim, Santa Eulália, e a própria cidade de Elvas, que se abastecem com as sarroncas aí fabricadas em grandes quantidades nesta ocasião), ora na rua, em grupos festivos, de que ela sustenta a animação.
Na tela seis ou setecentista, de autor desconhecido, representando a Adoração dos Pastores, existente em Elvas, na Igreja de Santa Maria da Alcáçova, e a que já nos referimos, vê-se, como dissemos, um pastor ajoelhado junto ao Menino, com a sarronca ao lado; trata-se de uma vasilha de barro de cerca de 30 cm de altura e medianamente bojuda, e com a boca revestida de pele, recortada em folho à sua volta (certamente por erro, falta o elemento fricativo, corda ou, mais provavelmente — segundo o estilo local —, pau).
Esta feição natalícia nota-se na área além-Guadiana e, sobretudo, na arraia beiroa, na Malpica e no Rosmaninhal, onde se cantam quadras humorísticas, toda a noite de Natal, dedicadas à zamburra, e pretexto para copiosas libações (de resto, certamente por se lhe reconhecer esse carácter humorístico, ela usa-se nestas localidades também na matança do porco, ocasião por toda a parte de grande euforia).
Em Loulé, por seu turno, a sarronca, como dissemos, com o nome de adufo, acompanha também os cânticos das noites de Natal, Ano Novo e Reis, que terminam com as «chacotas» elogiosas ou insultuosas aos donos das casas. O mesmo sucede na região trasmontana de Leste, de Mazouco e Fornos (Freixo de Espada à Cinta) ao Mogadouro (Bruçô) e Terras de Miranda (Ifanes, Duas Igrejas, etc.), onde a zorra ou zabumba se usa igualmente na noite de Natal, e é mesmo tocada na igreja durante a Missa do Galo.
Em algumas terras compreendidas nesta área, a sarronca toca-se não apenas na noite de Natal mas durante todo o ciclo do Inverno, mormente, como em Loulé, nas três celebrações principais que nele têm lugar — Natal, Ano Novo e Reis —, nestes casos a acompanhar as cantigas e peditórios próprios dessas ocasiões.
ERNESTO VEIGA DE OLIVEIRA (in “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1966 – p. 210-213)
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